terça-feira, 1 de março de 2016

Passou da hora

Sobre as Pressões 

Por: Ric Jones (obstetra)

Por que os médicos insistem em interromper gestações arbitrariamente com 41 semanas (às vezes falam até em 40 semanas)?
Não é por ignorancia ou arrogância, é por medo. Se alguma coisa acontecer entre 40 e 42 semanas – período em que o bebê estava bem e pronto (maduro) para nascer – a família não pensará duas vezes e vai atacar impiedosamente o médico que “deixou passar da hora”. Quem já não ouviu uma história assim?
Hoje em dia até o tamanho de uma gestação normal foi contestado, questionando os valores históricos de Friedmann. Mais ainda o tempo adequado de maturidade fetal. Entretanto, há alguns anos, houve trabalhos que demonstravam que induzir um parto com 41 semanas melhorava os resultados pós natais, mesmo que hoje eles sejam duramente combatidos. O resultado é pouco expressivo, mas o suficiente para o embasamento de condutas. Esse detalhe vai ao encontro das fantasias ancestrais que falam de um “útero malévolo e sufocante”, determinando aos médicos a nobre tarefa de liberar a inocente criança da angústia sufocante desse aprisionamento. Essas histórias nutrem o imaginário das culturas, que cobram dos profissionais uma ação salvadora para o novo membro que está para nascer, assim como culpabilizam o corpo defeituoso da mulher pelo risco em que colocam seu bebê. Para as culturas patriarcais as mulheres são vistas como ameaçadoras e seus corpos cópias mal acabadas e defectivas do padrão de perfeição: o corpo masculino, fac simile da estrutura divina.
Como se pode ver com facilidade, de nada adianta mudar os médicos sem modificar os pacientes. Os médicos nada mais são do que o reflexo da sociedade onde vivem, e suas ações acabam reproduzindo os valores disseminados pela cultura em que estão inseridos. Não existe distância entre o padrão dos médicos e dos seus clientes; eles estão próximos e compartilham medos, angústias e modos de compreensão da realidade.
Outro exemplo: gestante da cidade vizinha chega ao hospital público ao anoitecer com dois cm de dilatação e em pródromos (poucas e esparsas contrações). O que é correto fazer? Mandar embora, já que não se configurou a fase ativa do trabalho de parto. Entretanto, o que fazem os médicos? Via de regra, internam e colocam ocitocina para “melhorar a dinâmica uterina”.
Mas por quê, já que sabemos que essa atitude não tem respaldo cientifico? Ora, porque ao agir de forma correta – pedir que volte mais tarde em fase ativa – o médico plantonista corre o risco de ser ameaçado pela família, que irá na rádio local acusá-lo de “não aceitar internar”.
O médico ainda não tem amparo algum da sociedade para fazer a melhor medicina. Diante das pressões ele interna a gestante, afasta-a da família “adrenalínica” e ansiosa, realiza os rituais de “purificação” (banho, enema, roupa branca, cabelo preso, tricotomia, etc.) e coloca soro (ocitocina) para apressar o parto, já que não pode ocupar um leito por 24 horas com uma única paciente. Por outro lado, o profissional sabe que estimulando agressivamente o útero com hormônios vai aumentar a chance de uma cesariana. No fim ela acaba operada e a família fica feliz e satisfeita. A desculpa já estava pronta mesmo antes de sair de casa: “não teve dilatação”.
Mas não se iludam; nessa história todos são culpados e quem paga a conta salgada das intervenções é a pobre mulher e seu o bebê. Precisa bem mais do que novas leis sobre cesariana e parto normal para que modifiquemos o cenário da assistência ao parto. É necessário mudar uma cultura, o rio de valores em que bebem médicos e pacientes, e isso se faz lentamente através da educação.
Outra história curiosa: Quando eu era plantonista numa cidade da periferia de Porto Alegre vivi muitas vezes esta cena. Revólver na cintura, carteiraço de funcionário da prefeitura e até carteirinha de doador de sangue (???!!!) eram usadas como elementos de intimidação. Muitas vezes as pacientes chegavam ao centro obstétrico acompanhadas ao plantão do vereador populista da cidade, com 38 semanas de gestação, para fazer a “cesariana com ligadura” que havia sido prometida na campanha eleitoral.
Naquela época, 25 anos passados, eu havia estabelecido o parto de cócoras como o padrão no meu dia de plantão. Não é de se espantar que um vereador da cidade convocou uma reunião na câmara para debater o estranho caso de um médico obstetra plantonista – e louco – que colocava as mulheres para “parir como galinhas” no hospital municipal.
Foi ao saber dessa notícia que eu me dei conta que o protagonismo da mulher, elemento que eu já percebia como central para uma revolução no parto, precisaria de mais um quarto de século para ser entendido. Ertei nas contas…  vai orecisar um pouco mais.
A soluçäo para esta falta de sintonia entre o “saber e o fazer” não se esgota na velha tese da melhoria do pré-natal. Eu prefiro ir um pouco mais longe. Pré-natal para curar preconceitos com a gestação e o parto para mim é tão eficiente quanto “cura gay”. Os valores do parto e nascimento são introjetados na mais tenra infância e fazem parte da nossa arquitetura emocional. Não se derrubam mitos e preconceitos fazendo encontros mensais de 30 minutos com um profissional de saúde, por melhor e mais capacitado que ele seja. Mesmo que eu concorde com a grande importância do pré natal para estimular a autoconfiança e o protagonismo das futuras mães, creio que precisamos agir muito antes disso. É na primeira infância – e depois na escola fundamental – que devemos iniciar a tratar de parto. Sou muito a favor de aulas de parto e nascimento nas escolas, longe dos conceitos biologicistas e próximo de uma visão afetiva, espiritual e social.
Só assim poderemos estreitar de forma certeira a distância que separa o que fazemos daquilo que sabemos ser o melhor para os nossos pacientes.

Fonte: http://orelhasdevidro.com/2015/12/30/sobre-as-pressoes/

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